Publicado em 29/09/2006 23:52

Chico Taboca

Taboca era sabedoria, porque era o lado épico da verdade.

Chico Taboca, substância viva da existência

 

            Na esteira de uma narrativa ocorre a mediação simbólica da ação dos sujeitos que narram suas histórias, percursos vividos. É assim que Guimarães Rosa evidencia a ressonância das muitas épocas em vozes que se configuram em palavras. Nascido de uma dessas palavras, Chico Taboca é uma lembrança dominante, ponto brilhante em torno das quais os outros formam uma vaga nebulosidade. Esse ponto brilhante, com suas estórias fantásticas, causos de bravura, virilidade e verdades atemporais multiplica-se à medida que se dilata em nossa memória.

            Sejam nas cenas de furor do ser baiano ou pela força de bate-pau da polícia ou do aedos do baixo meretrício, que Chico Taboca, radicado em Inhumas nos anos 40 é recordado. Esse ato é o esforço particular do sujeito em trazer de volta cenas que impregnam o seu existir. Esse exercício da narrativa em Chico faz parte da memória do corpo, uma vez que só é recordado o que passou pela corporalidade. As cicatrizes dos tiros e facadas marcaram o corpo imaginário de seu portador como território da degustação prazerosa aqueles que ouviam suas estórias.

            A razão narrativa de Chico aquinhôo o próprio corpo na medida em que as estórias saídas dele retornaram recontadas a seu autor. Recordar Chico é trazer de volta o não escrito. Assim, a razão narrativa cumpre seu objetivo de ser portadora da memória. Em suas estórias as cenas representam hábitos de vida, padrões de sociabilidade, costumes de uma gente que acredita no amor e detesta a desordem das ruas. Nesse sentido, Chico, o colecionador dessas desordens, torna-se um flenêur sertanejo; fermento da inquietação cotidiana.

Amparado por um guarda-chuva como se tateasse os raios do sol a medir a largura da rua Goiás o jogo de amarelinhas pontilhadas em pedras (antigo calçamento), a indumentária (terno preto, e chapéu de feltro) atravessava as fissuras da mesmice. Sua inscrição no mundo deixa marcas traduzíveis em gravações de duração variável. Mesmo quando ultrapassam a média, raramente durava mais que um dia no tempo do mundo. O coronel ia torna-se lobisomem em casa. Suas estórias o tornou personagem de si mesmo. A obediência de mando coronelista de Taboca não dominou o lobo, o selvagem, a própria natureza que o devorava por dentro. Antropofágico, os causos de Chico devorava a epiderme dos que se valeram dele como narrador. Não basta lembrar que foi raiz a sustentar o duplo sentido do que fundou e do que alimentou, embora tenha também morrido de morte humana: da fome de arroz. Em outras palavras, Chico foi moldura de cenas citadinas no registro de uma vida que não era mais sua.

            Ao interrogar a história, o sujeito, em sua narrativa, aponta-nos caminhos que podem fazer-nos recordar a angústia do existir. A angústia de estar no mundo de escolhas trágicas que universalmente tocam a face do sujeito, levando-o a lembranças de lugares de memória, já visitados, revisitados, construídos ou a serem esquecidos. A transição da monarquia para a república brasileira não foi o terreiro que concebeu esse personagem mítico.

            No itinerário da memória, entre os que constroem o vivido pela lembrança, numa razão que narra o passado com a vitalidade do presente, indagar ao estilo grego de Chico é questionar os seres para um só dia. Aprende-se nessas estórias, a conduzir melhor nossa memória quando está por fio a lembrança.

A ausência está subordinada ao que já passou da vivacidade ao momento vivido. Chico torna-se presente pela memória, materializada por meio da linguagem falada no ritual da narrativa. Dessa forma a ausência do coronel sinaliza um passado vivaz, embora seletivo, a memória remete ao encantamento, pois antecipa as dobras do tempo num processo de magificação de fatos virados imaginários. Nesse contar é que a história (Clio), filha de Mnemósine (memória), abre cenários para interpretar a teia de acontecimentos. Chico Taboca esculpiu no tempo, Clio. O eterno aparece presente para trazer de volta a lembrança dos acontecimentos. Daí voltam ao lugar de origem, os ouvintes ao narrador; a arte de dar conselhos passa a ser tecida na substância viva da existência, existência chamada sabedoria, por isso, Taboca era sabedoria, porque era o lado épico da verdade.

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