Olhos Caçadores
Um dos meus prazeres é passear pela feira. Vou para comprar. Os olhos compradores são olhos caçadores
Comer com os olhos é enfeitiçar os sentidos
Um dos meus prazeres é passear pela feira. Vou para comprar. Os olhos compradores são olhos caçadores: vão em busca de coisas específicas para o almoço e a janta. Alterno o olhar caçador com o olhar vagabundo. O olhar vagabundo não procura nada. Ele vai passeando sobre as coisas. Buscando prazer naquilo que não se compra nem são comidas. O olhar caçador está a serviço da boca, o olhar vagabundo é o que se come. Por isso muita gente come com os olhos. Na feira é possível ir com olhos poéticos e com olhos não poéticos. Os olhos não poéticos vêem as coisas que serão comidas. Olham para as cebolas e pensam em molhos. Os olhos poéticos olham para a s cebolas e pensam em outras coisas. A cebola cortada lhe apareceu, repentinamente, como escamas de cristal. Vista dessa forma uma cebola nunca será a mesma coisa. Ando assim pela feira poetizando, vendo nas coisas que estão expostas nas bancas realidades assombrosas, incompreensíveis, maravilhosas. Pessoas há que, para terem experiências místicas, fazem longas peregrinações para lugares onde, segundo relatos de outros, algum anjo ou ser do outro mundo apareceu. Quando quero ter experiências místicas eu vou à feira Cebolas, tomates, pimentões, uvas caquis e bananas. Entidades encantadas. Seres de um outro mundo. Interrompem a mesmice do meu cotidiano.
Pimentões, brilhantes, lisos, vermelhos, amarelos e verdes. Nabos brancos, redondos, outros obscenamente compridos. Lembro-me de uma crônica da querida e inspirada Hilda Hilst que escandalizou os delicados: ela ia pela feira poetizando eroticamente sobre nabos e pepinos. Escandalizou porque ela disse o que todo mundo pensa mas não tem coragem de dizer. Roxas berinjelas, cenouras amarelas, tomates redondos e vermelhos, morangas gomosas, salsinhas repicadas e tesourinha, cebolinhas, canudos ocos, bananas compridas e amarelas, caquis redondos e carnudos, mamões, úteros grávidos por dentro, laranjas alaranjadas (um gomo de laranja é um assombro, o suco guardado em milhares de garrafinhas transparentes), cocos duros e sisudos, pêssegos, perfume de jasmim imperador, cachos de uvas, delicadas obras de arte, morangos vermelhos, frutinhas que se comem à beira do abismo... Minha caminhada me leva os vegetais às carnes: lingüiças, costelas defumadas, carne de sol, galinhas. Os vegetarianos estremecem. Compreendo, porque na alma eu também sou vegetariano. Fosse eu rei, decretaria que no meu reino nenhum bicho seria morto para nosso prazer gastronômico. Mas rei não sou. Os bichos já foram mortos contra a minha vontade. Nada posso fazer para trazê-los de volta à vida. Assim, dou-lhes minha maior prova de amor, transformando-os em deleite culinário para que continuem a viver no meu corpo. De alguma maneira vivem em mim todas as coisas que comi. Sobre isso sabia muito bem o genial pintor Giuseppe Arcimboldo (1527-1593), que pintava os rostos das pessoas com os legumes, frutas e animais que se encontravam nas bancas da feira.
Meus pensamentos começam a teologar. Penso que Deus deve ter sido um artista para inventar coisas tão incríveis para se comer. Penso mais: que ele foi gracioso. Deu-nos as coisas incompletas, cruas. Deixou-nos o prazer de inventar a culinária . O prazer de comer, mesmo, não é muito demorado. Pode até ser muito rápido, como no McDonalds. O que é demorado são os prazeres preliminares, arrastados - quanto mais demora maior é a fome, maior a alegria no gozo final. Bom seria se cozinha e sala de comer fossem integradas - como as casas dos nossos avós - para que os que vão comer pudessem participar também dos prazeres do cozinhar.
Quem pensa que a comida só faz matar a fome está redondamente enganado. Comer é muito perigoso. Porque quem cozinha é parente próximo das bruxas e dos magos. Cozinhar é feitiçaria, alquimia. E comer é ser enfeitiçado. Porque alegria também se produz pela comida. Depois de comer, as pessoas não permanecem as mesmas.
Gleidson Oliveira
Um dos meus prazeres é passear pela feira. Vou para comprar. Os olhos compradores são olhos caçadores: vão em busca de coisas específicas para o almoço e a janta. Alterno o olhar caçador com o olhar vagabundo. O olhar vagabundo não procura nada. Ele vai passeando sobre as coisas. Buscando prazer naquilo que não se compra nem são comidas. O olhar caçador está a serviço da boca, o olhar vagabundo é o que se come. Por isso muita gente come com os olhos. Na feira é possível ir com olhos poéticos e com olhos não poéticos. Os olhos não poéticos vêem as coisas que serão comidas. Olham para as cebolas e pensam em molhos. Os olhos poéticos olham para a s cebolas e pensam em outras coisas. A cebola cortada lhe apareceu, repentinamente, como escamas de cristal. Vista dessa forma uma cebola nunca será a mesma coisa. Ando assim pela feira poetizando, vendo nas coisas que estão expostas nas bancas realidades assombrosas, incompreensíveis, maravilhosas. Pessoas há que, para terem experiências místicas, fazem longas peregrinações para lugares onde, segundo relatos de outros, algum anjo ou ser do outro mundo apareceu. Quando quero ter experiências místicas eu vou à feira Cebolas, tomates, pimentões, uvas caquis e bananas. Entidades encantadas. Seres de um outro mundo. Interrompem a mesmice do meu cotidiano.
Pimentões, brilhantes, lisos, vermelhos, amarelos e verdes. Nabos brancos, redondos, outros obscenamente compridos. Lembro-me de uma crônica da querida e inspirada Hilda Hilst que escandalizou os delicados: ela ia pela feira poetizando eroticamente sobre nabos e pepinos. Escandalizou porque ela disse o que todo mundo pensa mas não tem coragem de dizer. Roxas berinjelas, cenouras amarelas, tomates redondos e vermelhos, morangas gomosas, salsinhas repicadas e tesourinha, cebolinhas, canudos ocos, bananas compridas e amarelas, caquis redondos e carnudos, mamões, úteros grávidos por dentro, laranjas alaranjadas (um gomo de laranja é um assombro, o suco guardado em milhares de garrafinhas transparentes), cocos duros e sisudos, pêssegos, perfume de jasmim imperador, cachos de uvas, delicadas obras de arte, morangos vermelhos, frutinhas que se comem à beira do abismo... Minha caminhada me leva os vegetais às carnes: lingüiças, costelas defumadas, carne de sol, galinhas. Os vegetarianos estremecem. Compreendo, porque na alma eu também sou vegetariano. Fosse eu rei, decretaria que no meu reino nenhum bicho seria morto para nosso prazer gastronômico. Mas rei não sou. Os bichos já foram mortos contra a minha vontade. Nada posso fazer para trazê-los de volta à vida. Assim, dou-lhes minha maior prova de amor, transformando-os em deleite culinário para que continuem a viver no meu corpo. De alguma maneira vivem em mim todas as coisas que comi. Sobre isso sabia muito bem o genial pintor Giuseppe Arcimboldo (1527-1593), que pintava os rostos das pessoas com os legumes, frutas e animais que se encontravam nas bancas da feira.
Meus pensamentos começam a teologar. Penso que Deus deve ter sido um artista para inventar coisas tão incríveis para se comer. Penso mais: que ele foi gracioso. Deu-nos as coisas incompletas, cruas. Deixou-nos o prazer de inventar a culinária . O prazer de comer, mesmo, não é muito demorado. Pode até ser muito rápido, como no McDonalds. O que é demorado são os prazeres preliminares, arrastados - quanto mais demora maior é a fome, maior a alegria no gozo final. Bom seria se cozinha e sala de comer fossem integradas - como as casas dos nossos avós - para que os que vão comer pudessem participar também dos prazeres do cozinhar.
Quem pensa que a comida só faz matar a fome está redondamente enganado. Comer é muito perigoso. Porque quem cozinha é parente próximo das bruxas e dos magos. Cozinhar é feitiçaria, alquimia. E comer é ser enfeitiçado. Porque alegria também se produz pela comida. Depois de comer, as pessoas não permanecem as mesmas.
Gleidson Oliveira
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