Publicado em 26/04/2006 18:08

Tempo vivo da memória

Fundado no último dia 16 de março de 2006, o Instituto Histórico Geográfico de Inhumas compreende dois dos muitos pontos positivos sugeridos por um grupo de intelectuais goianienses (Aidenor Aires, Ivone Silva, Bariane Ortêncio, José Mendonça Teles e Ubirajara Galli) responsáveis por estende-lo a Inhumas: a valorização cultural do interior goiano como forma de descentralização das ações do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro existente desde o século XIX, quando de sua criação por D. Pedro I, e sua posterior instalação em Goiás em 1932, e, em segundo, por servir de depositário cultural enquanto suporte a preservação e divulgação da cultura regional e local, seja em seu caráter científico ou não científico. Representação que se faz em nível regional por seu presidente, o escritor Aidenor Aires, e em nível de Inhumas, o historiador Gleidson de Oliveira Moreira.

Fundado no último dia 16 de março de 2006, o Instituto Histórico Geográfico de Inhumas compreende dois dos muitos pontos positivos sugeridos por um grupo de intelectuais goianienses (Aidenor Aires, Ivone Silva, Bariane Ortêncio, José Mendonça Teles e Ubirajara Galli) responsáveis por estende-lo a Inhumas: a valorização cultural do interior goiano como forma de descentralização das ações do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro existente desde o século XIX, quando de sua criação por D. Pedro I, e sua posterior instalação em Goiás em 1932, e, em segundo, por servir de depositário cultural enquanto suporte a preservação e divulgação da cultura regional e local, seja em seu caráter científico ou não científico. Representação que se faz em nível regional por seu presidente, o escritor Aidenor Aires, e em nível de Inhumas, o historiador Gleidson de Oliveira Moreira.


O gosto do cheiro
 Por Gleidson de Oliveira Moreira

Interessa-me mais o prazer que aparece no rosto curioso e sorridente de alguém que tira a tampa da panela, para ver o que está lá dentro. Nossas cozinhas, em nossas fantasias, nada deveriam a ver com estas de hoje, modernas, tudo movido a botão, forno de micro-ondas, adeus aos jogos eróticos preliminares de espiar, cheirar, beliscar, provar, perfurar... Tudo rápido, tudo prático, tudo funcional. Imaginei que quem assim trata a cozinha, no amor deve ser semelhante aos galos e galinhas, quanto mais depressa melhor.

Quero voltar à cozinha lenta, erótica, lugar onde a química está mais próxima da vida e do prazer, cozinha velha, quem sabe com alguns picumãs pendurados no teto, testemunhos de que até mesmo as aranhas se sentem bem ali.

Nada melhor que o contraste. A sala de visitas, por exemplo. Lá na cidade de Goiás, faz tempo. Retrato silencioso oval do avô, na parede; samambaia no cachepô de madeira envernizada; porta-bibelôs; as cadeiras, encostos verticais, 90 graus, para que ninguém se acomodasse; capas brancas engomadas pra que nenhuma cabeça brilhantinosa se encostasse; os donos dizendo em silêncio está mesmo na hora, enquanto a boca mente dizendo ainda é cedo, na hora da partida, junto com as recomendações á Dona Sinhá (porque toda família tinha de ter uma Sinhá). Aí a porta se fechava, e a vida recomeçava, na cozinha...

A porta da rua ficava aberta. Era só ir entrando. Se não encontrasse ninguém não tinha importância, porque em cima do fogão estava a cafeteira de folha de Iaiá (mãe na língua Nagô), sempre quente, para quem quisesse. Tomava-se o café e ia-se embora, havendo recebido o reconforto daquela cozinha vazia e acolhedora. Eu diria que a cozinha é o útero da casa: lugar onde a vida cresce e o prazer acontece, quente... Tudo provoca o corpo e sentidos adormecidos acordam. São os cheiros de fumaça, da gordura queimada, do bolo de arroz que cresce no forno, dos temperos que transubstanciam os gostos, profundos dentro do nariz e do cérebro, até o lugar onde mora a alma. Os gostos sem fim, nunca iguais, presentes na ponta da colher para a prova, enquanto o ouvido se deixa embalar pelo ruído crespo da fritura e os olhos aprendem a escultura dos gostos e dos odores nas cores que sugerem o prazer...
 
Cozinha: ali se aprende a vida. É como uma escola em que o corpo, obrigado a comer para sobreviver, acaba por descobrir que o prazer vem de contrabando. A pura utilidade alimentar, coisa boa para a saúde, pela magia da culinária, se torna arte, brinquedo, fruição, alegria.
 
Pensei então se não haveria algo que os professores pudessem aprender com os cozinheiros: que a cozinha fosse a antecâmara da sala de aulas, e que os professores tivessem sido antes, pelo menos nas fantasias e nos desejos, mestres-cucas, especialistas, nas pequenas coisas que fazem o corpo sorrir de antecipação. Isto. Uma Filosofia Culinária da Educação. Imaginei que os professores, acostumados a homens ilustres, sem cheiro de cebola na mão, haveriam de se ofender.
 
Logo me tranqüilizei, ouvindo a sabedoria de que: O homem é aquilo que ele come, idéias claras e distintas podem ser boas para o pensamento, por isso imitar os que preparam as coisas boas é ensinam novos sabores...
 
A primeira lição é que não há palavra que possa ensinar o gosto do feijão ou o cheiro do coentro. É preciso provar, cheirar, só um pouquinho, e ficar ali, atento, para que o corpo escute a fala silenciosa do gosto e do cheiro. Explicar o gosto, enunciar o cheiro; pra estas coisas a Ciência de nada vale; é preciso sapiência, ciência saborosa, para se caminhar na cozinha, este lugar de saber-sabor. Cozinheiro: bruxo, sedutor. — Vamos, prove, veja como está bom... Palavras que não transmitem saber, mas atentam para um sabor. O que importa está para além da palavra. É indizível. Como ele seria tolo se avaliasse seus alunos por meio de testes de múltipla escolha. É assim com a vida inteira, que não pode ser dita, mas apenas sugerida. Lembro-me do mestre Barthes, a quem amo sem ter conhecido, que compreendia que tudo começa nesta relação amorosa, ligeiramente erótica, entre mestre e aprendiz, e que só aí que se pode saborear, como numa refeição eucarística, os pratos que o mestre preparou com a sua própria carne...
 
A lição dois é que o prazer do gosto e do cheiro não convivem com a barriga cheia. O prazer cresce em meio às pequenas abstenções, às provas que só tocam a língua... É aí que o corpo vai se descobrindo como entidade maravilhosamente polimórfica na sua infindável capacidade para sentir prazeres não pensados. Já os estômagos estufados põem fim ao prazer, pedem os digestivos, o sono e a obesidade. Cozinheiros de tropa nada sabem sobre o prazer. A comida se produz às dezenas de quilos. Pouco importa que os corpos sorriam. Comida combustível. Que os corpos continuem a marchar. Melhor se fossem pílulas. Abolição da cozinha, abolição do prazer: pura utilidade, zero de fruição.

— A comida tava boa?

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